segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O candeeiro que conheceu Darwin e se esqueceu de dizer que existia





Há uns anos, nas internetes, discutia-se a crença, ou não, no paranormal. A dada altura uma pessoa escreve que, embora não sendo crente, existiam fenómenos que a faziam questionar. Dizia essa pessoa que, por exemplo, havia um candeeiro de rua que sempre que ela passava, intermitentemente se apagava e acendia, e que, para si, isso indicava algum tipo de fenómeno que não conseguia explicar mas que atribuía a alguma interferência entre si e o dito, como se houvesse algo de místico nisso. Perguntei-lhe se já lhe tinha passado pela cabeça que o candeeiro se apagava e acendia independentemente da sua presença e se o que levava a concluir tal coisa não se prendia com o facto de não o ver "piscar" quando não estava lá. Para minha surpresa (ou não) a pessoa respondeu que nunca lhe havia passado tal hipótese pela cabeça.

Este pequeno episódio, penso, ilustra bem a psicologia da Humanidade ao longo da sua existência.

E existem outros tantos, bem banais até, que demonstram claramente que devemos estar atentos à forma como construímos os nossos pensamentos. Quem nunca ouviu alguém dizer de forma peremptória coisas como "não levei o meu guarda-chuva, por isso choveu" ou atribuir estar preso num engarrafamento ao carma? Tal é o peso do Ego que realmente muitas vezes não se tem conta do absurdo, porque realmente o que se está a dizer é que, por exemplo em Portugal, 10 milhões de pessoas estão sujeitas à chuva porque "Eu" me esqueci do guarda-chuva ou que, no caso do engarrafamento, milhares de pessoas estão presas no transito, e quem sabe, alguém morreu e alguém ficou órfão, devido ao mau carma provocado por "Eu" ter mandado à merda a senhora da florista, ou até por não ter acendido a vela da cor certa.

E é longa a tradição... A terra é o centro do universo, o sol gira à nossa volta e tudo existe para nós. A Humanidade não pode ter apenas surgido de uma poça de lama, somos tão especiais que os Deuses, Deus ou os Aliens têm de estar envolvidos. E as estrelas... as estrelas se brilham, brilham para nós - porque sem nós não fazia sentido que brilhassem - as suas formas estão lá para guiarem as nossas vidas. E de certa forma são compreensível tais infantilidades da antiguidade. Não me chocam. A vida é um acto violento e traumático. Pobres de nós, acabados de emergir da animalidade pura para nos depararmos com a consciência... e claro com a Morte. E sendo a morte em parte semelhante ao sono, e sendo o sono povoado de sonhos, é também compreensível que se equacione um outro mundo como forma de lidar com a dor... de facto, é minha opinião, que a fase de negação do trauma que é a morte ainda hoje o vivemos. Quantas vezes já me deparei com pessoas que, quando confrontadas com a minha opinião de que depois da vida simplesmente não existe nada, me respondem que tal não pode ser, porque seria profundamente injusto. Como se houvesse uma obrigação do universo obedecer às leis do raciocínio e imaginação da humanidade, apenas porque sim. Como se fosse sua obrigação aliviar as nossas dores.

É por isso que admiro o pensamento cientifico. Porque, mesmo que ainda seja sujeito às falhas Humanas, é um sinal de maturidade da nossa espécie. De certa forma afasta-nos do egocentrismo infantil com que fomos vivendo - e que ainda está bem patente no mundo - alterando a lógica do nosso raciocínio. As coisas, lentamente, vão deixando de existir em nossa função e, com humildade, reconhecemos a nossa ignorância e, de forma mais significativa, a nossa insignificância. Somos uma criança que lentamente abandona as birras e enfrenta a realidade.

E, ao contrário do que muitas pessoas apregoam, não é objectivo da ciência (para se discutir o que é a ciência seriam necessários vários volumes e certamente não escritos por mim) matar o espírito nem a imaginação mas sim criar uma forma de conhecimento palpável que seja o mais independente possível das vontades e patologias mentais humanas. Pegando no meu querido Darwin, a sua teoria seria tão válida como a de um Monge que se senta a meditar/rezar horas ou dias, ou uma vida inteira, perdido nos seus níveis de consciência, esperando encontrar alguma universalidade no seu pensamento, concluindo finalmente que o homem é a mais perfeita criação de deus e que foi construído à sua imagem. Quero dizer que; o relevante na ideia de que toda a vida, nós humanos incluídos, tem uma origem comum e de que todo esse processo é aleatório e amoral, não é apenas a ideia em si, por mais fascinante que seja. A elegância está em não ser fruto de uma experiência meramente interior, e sujeita ao tipo de falácias com que abri este texto, mas sim fruto do seu embate com o mundo exterior, comum a todos nós e livre das nossas vontades.

Pode não ser tão encantador e harmonioso como a ideia de perfeição apregoada pelas religiões, por mais diversas que sejam. Mas é, a meu ver, pelo menos, mais honesto. De facto a teoria da evolução - como diz Stephen J. Gould no seu livro "O Sorriso do Flamingo" - tem a sua maior força na exposição que faz da falta de harmonia existente no mundo. A ilusão de que o mundo era uma máquina perfeita caiu por terra simplesmente pela observação da realidade. O mundo, de acordo com Darwin, era um mundo de extinções em massa (como os registo fósseis comprovavam), era um mundo onde o aparente equilíbrio se faz da morte dos infantis e dos idosos, onde existiam vespas que colocavam os seus ovos dentro das larvas de escaravelho para estes devorarem por dentro a sua prole. É esse o nosso mundo e havendo um Deus omnipresente e omnipotente então toda esta crueldade seria sua vontade... ou então - mais logicamente - existindo ou não Deus (eu prefiro o termo criador) apenas criou as leis naturais que fazem o mundo não tendo qualquer papel interventivo.

E com isto se vê como é fundamental o conhecimento factual do nosso mundo para o próprio encontro com o Divino. Se pensarmos bem as religiões sempre dependeram da realidade física (re)conhecida para estabelecerem os seus fundamentos. Seja quando a terra assentava nas costas de uma tartaruga, seja quando era plana ou o centro do universo. A procura das leis naturais é vital por isso mesmo, mesmo que isso ofenda o nosso ego por tonar cada vez mais irrelevantes as nossas vontades.

Pessoas como Darwin ou Einstein (ou Newton, Galileu, Planck, etc...) alteraram o nosso mundo. Influenciaram a filosofia, a religião e, claro, a nossa forma de construir o mundo. Alteraram nas nossas sociedades a própria psicologia de Deus e com isso estamos cada vez mais longe daquele ser mesquinho e castigador que acena a cada esquina com o Carma ou com a Culpa como quem estala um chicote. Obviamente que esta abolição do pastor, este ênfase no livre arbítrio, fez ruir pilares e abanar o edifício. Mas mesmo assim, e mesmo que um dia por entre escombros, prefiro isto a qualquer passado obscuro.



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